sábado, 17 de dezembro de 2011

FILHOS







Antes que elas cresçam (Affonso Romano de Sant'Anna)



Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos
próprios filhos.
É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores,
tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a
inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos
preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma
estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.Mas não crescem todos
os dias, de igual maneira; crescem, de repente.Um dia se assentam perto de você
no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais
trocar as fraldas daquela criatura.Onde e como andou crescendo aquela danadinha
que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a
pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços,
amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?Ela está crescendo num ritual de
obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da
discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos
pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos
sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.Entre
hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua
geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada
na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem
jeito, é o emblema da geração.Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo
casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as
mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são
as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das
colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas,
vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.Há um
período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.Longe já vai o
momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas
vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando
surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e
inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias
vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção
francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no
apartamento dela.Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para
ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância,
e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e
agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito
“drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres
e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.Elas cresceram
sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto. No princípio subiam a serra ou
iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas,
piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela
janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em
que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um
sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros
namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos
bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas,
de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.O jeito é esperar.
Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado,
não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os
avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a
última oportunidade de reeditar o nosso afeto.Por isso, é necessário fazer
alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

Um comentário:

  1. Anônimo13:10

    Há duas coisas que as pessoas que vivenciam ou vivenciaram conflitos profundos com os pais não conseguem entender: (1) Que eles, os pais, por mais que não conseguiram atrair dos filhos a honra e o respeito, devem ser honrados e respeitados simplesmente por serem pais; (2) que a ausência da honra e do respeito aprofundam nos filhos os conflitos internos gerados pela vivência conflituosa que tiveram com os pais. François Bernaut, psicanalista francês.

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